quarta-feira, 3 de setembro de 2008

 

A realidade da vida matrimonial no Portugal contemporâneo



«Importa, todavia, não abstrair por completo da consideração da realidade da vida matrimonial no Portugal contemporâneo».

Foi com estas palavras que o Presidente da República Cavaco Silva justificou em primeira análise a sua decisão de devolver à Assembleia da República, sem o promulgar, o projecto de lei que aprovava o novo regime jurídico do divórcio.
As reacções político-partidárias não se fizeram esperar com os partidos de esquerda a manifestarem a sua indignação com o veto presidencial, e a projectarem até o reenvio do diploma ao Presidente após a obtenção de uma maioria parlamentar de dois terços.
E, obviamente, com os partidos de direita a regozijaram-se com a decisão presidencial, reafirmando que a nova lei iria fragmentar e pôr em causa o conceito tradicional de «família».

Confesso que por vezes é difícil conter alguma indignação num debate, muito mais quando se trata de um assunto desta delicadeza e complexidade. Mas muito principalmente quando nas nossas barbas alguém fundamenta a sua opinião com argumentos que justificariam uma posição exactamente oposta.

De facto, não sei exactamente qual o conceito de «família» que têm os deputados do PSD e do CDS. Mas, do que conheço do projecto de lei, parecia-me que era exactamente uma maior protecção da família que resultava do novo regime jurídico.
Porque uma coisa é certa: a família poderá ser tudo menos um conjunto de pessoas que por acaso das circunstâncias vivem (ou se vêem obrigadas a viver) debaixo do mesmo tecto.

A família é muito mais do que isso: é um projecto de vida em comum dos seus membros, é uma comunhão sentimental e afectiva e até também patrimonial, é uma partilha de afectos, de um respeito e de compromissos mútuos, de uma entreajuda em projectos comuns e de uma incondicional disponibilidade de assistência recíproca.

Sem isto não há família.
E é por isso que obrigar alguém por via legislativa a manter-se numa partilha de hipocrisias debaixo do mesmo tecto é uma das maiores barbaridades e o mais tenebroso ataque que um órgão de soberania pode fazer, isso sim, ao conceito e aos valores da família.
Impor a alguém que já não vive em família a manutenção forçada de laços contratuais que já não fazem sentido, é pensar que a família existe tão só «por mero efeito» do contrato de casamento, ou que a família pode ser imposta por via administrativa.
E pensar isso é precisamente pôr à frente da família não mais do que velhos e apriorísticos conceitos de uma espécie de «sacralidade do matrimónio» que, se nunca fizeram sentido, muito menos o fazem nos dias de hoje.

E os resultados desta imposição forçada, desta persistência em pensar que quando se mantém um dos cônjuges preso a grilhetas contratuais já caducas se está a defender a família, como se a família fosse qualquer coisa abstracta e quase etérea, aí estão para quem os quiser ver: milhares e milhares de casos de violência doméstica e já 31 mulheres mortas só nos primeiros oito meses deste ano.
Quantas das vidas destas mulheres poderiam talvez ter sido poupadas se existisse uma lei que protegesse precisamente o «elo mais fraco» numa relação conjugal deteriorada, em vez de lhe impor uma convivência forçada debaixo do mesmo tecto com um facínora qualquer que já não é da sua família, mas que repetidamente a agride, viola e, por vezes, até a mata, tudo em nome de valores que não existem senão numa hipócrita fachada?

É por isso que não entendo a decisão do Presidente da República, e muito menos compreendo a que conhecimentos ou a que brilhantes e preclaros assessores o Presidente recorreu para se arrogar um conhecimento tão profundo «da realidade da vida matrimonial no Portugal contemporâneo».
Porque o que a sua decisão demonstra é, de facto, precisamente o contrário: um confrangedor desconhecimento da vida dos portugueses e do que se passa para além do conforto soturno e meramente teórico dos seus gabinetes.

A «realidade da vida matrimonial no Portugal contemporâneo»? Deixem-me rir!

Se alguma coisa a experiência nos ensina é que a vida matrimonial no Portugal contemporâneo efectivamente exige que as decisões políticas não sejam tomadas de costas voltadas para as pessoas ou proferidas em nome de preconceitos mesquinhos, mas que olhem antes para aquilo que essas pessoas na realidade pretendem e lhes é inequivocamente favorável.

Se alguma coisa poderá reflectir, isso sim, «a realidade da vida matrimonial no Portugal contemporâneo», se alguma coisa poderia justificar a implementação efectiva do novo regime jurídico do divórcio, seriam situações perfeitamente vulgares, como por exemplo o típico caso de uma mulher de 55 anos, que sempre foi «doméstica», que nada tem a que possa chamar seu, e que está simplesmente farta de mais de 30 anos de agressões e de abusos intermináveis, que é frequentemente forçada a manter relações sexuais com um cônjuge a cair de bêbado e a cheirar a tasca, com quem é casada mas que já não é o seu marido, e com quem há muito que já não forma uma família, mas com quem é forçada a partilhar o mesmo tecto porque simplesmente… não tem para onde ir.

O projecto de lei vetado pelo nosso ilustre Presidente, pelos vistos tão bem conhecedor «da realidade da vida matrimonial no Portugal contemporâneo» ter-lhe-ia possibilitado quebrar os laços do casamento mesmo contra a vontade do marido e forçar imediatamente a partilha dos bens comuns, para então começar de novo uma nova vida, e agora sim uma nova família, usando por exemplo a sua metade do produto da venda da casa do casal.
Poderia até, se fosse caso disso, pedir logo judicialmente alimentos ao seu ex-cônjuge, porque são precisamente o cônjuge e o ex-cônjuge que constam da alínea a) do artigo 2009º do Código Civil como as primeiras pessoas obrigadas a proporcionarem-lhe alimentos.
Mas, acima de tudo, tê-la-ia principalmente libertado das inenarráveis sevícias sofridas ao longo de décadas, nem que para isso tivesse de sair de casa e pedir auxílio a um familiar ou a uma organização de ajuda, porque agora teria a perspectiva de uma resolução breve da sua situação matrimonial e patrimonial.
Poderia, numa palavra, ter começado de novo!

Resta-lhe agora a lei actual, a tal mesma lei que o Presidente da República, o PSD e o CDS lhe dizem que reflecte de facto «a realidade da vida matrimonial no Portugal contemporâneo».
Porque é uma lei boa, isso sim, porque exige a invocação de uma violação grave e culposa dos deveres conjugais como fundamento de divórcio litigioso.
Mas qual invocação? Que provas apresentar? Alguém viu uma única agressão? Alguém viu o seu marido chegar a casa cheio de vinho e obrigá-la a abrir as pernas? Pois um dos deveres conjugais que compete à mulher não é precisamente manter relações sexuais com o seu legítimo marido?

Que coisa mais normal poderá haver na «realidade da vida matrimonial no Portugal contemporâneo» do que o marido querer mandar uma simples “trancada” à mulher? Que interessa que a mulher se sinta violada e se meta depois debaixo do chuveiro e se lave e se esfregue com força, vezes e vezes sem conta, enojada com tudo, enojada consigo mesma? Que interessa? Não são eles… uma família?

E se houvesse uma única agressão que se pudesse provar em tribunal, quem lhe garantia a sua segurança pessoal, quem iria impedir mais violações durante a meia dúzia de anos do processo de divórcio, que o seu marido faria arrastar até ao Supremo?
Quem lhe ensinaria a simplesmente vencer o terrível pavor que tem daquele energúmeno que vive lá em casa e que o Presidente da República, o PSD e o CDS lhe dizem que é da sua família, porque eles é que sabem qual é «a realidade da vida matrimonial no Portugal contemporâneo»?

O divórcio por mútuo consentimento está absolutamente fora de questão: a última vez que falou nisso ao marido levou um murro na cabeça (pois claro, para não deixar marcas) com tal violência que caiu desamparada no chão. Está bom de ver que só se o marido fosse um grande lorpa é que ia assinar um papel que o faria privar a si próprio de quem lhe lava as cuecas pelo preço da sua própria alimentação, e ainda por cima põe ali à mão de semear um buraco à sua disposição para quando lhe apetece esvaziar os tomates…

Como é bom os portugueses terem um Presidente da República e tão competentes deputados que assim tão bem conhecem qual é «a realidade da vida matrimonial no Portugal contemporâneo» e que, por tão bem a conhecerem, não hesitam nem por um minuto em impor tão lúcidos conhecimentos à realidade quotidiana de todos os portugueses.
E que não hesitam, enfim, em explicar a todos os portugueses que são eles quem é que bem sabe o que é isso de ser… uma família…




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