sábado, 29 de dezembro de 2007

 

UM BOM ANO DE 2008!



O «Random Precision» vai passar o fim-do-ano fora, lá fora.
Por isso, cá fica com alguma antecedência o tradicional post de fim-de-ano, e que (com algumas diferenças) publico um vez mais.
Cá vai:


«Um carabineiro com um martelo de madeira dá-me um forte golpe nos dedos mindinhos de ambas as mãos.
«A seguir, com um alicate, começa a arrancar-me as unhas.
«Nesse momento entra o sargento, que lhe tira o alicate para o utilizar a arrancar-me o bigode. Em dada altura, como resultado da grande dor e do desespero, consigo morder-lhe a mão, o que faz com que um carabineiro me dê uma coronhada na cara.
«Perco a consciência e, ao despertar, dou-me conta que sangro muito da cabeça, do nariz, da boca, e que me faltam oito dentes. Tinham-mos arrancado com o alicate ou com golpes. Não sei».

«Estava grávida de cinco meses.
«Obrigaram-me a ficar nua e a ter relações sexuais com a promessa de uma pronta libertação.
«Apalparam-me os seios, deram-me choques eléctricos nas costas, na vagina, no ânus.
«Arrancaram-me as unhas dos pés e das mãos. Agrediram-me com bastões de plástico e com a coronha de espingardas. Drogaram-me. Simularam fuzilar-me.
«Deitada no chão, com as pernas abertas, introduziram-me ratos e aranhas na vagina e no ânus. Sentia que era mordida e acordava banhada no meu próprio sangue.
«Conduzida a lugares onde era violada vezes sem conta, chegaram a obrigar-me a engolir o sémen dos violadores.
«Enquanto me agrediam na cabeça, no pescoço, na cintura, obrigavam-me a comer excrementos».

*

Entre 35.686 testemunhas, estes são apenas dois depoimentos de vítimas de tortura da Junta Militar do Chile durante o regime de Pinochet que voluntariamente se dirigiram à “Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura”.
Esta comissão foi criada no Chile em 2003 para dar a conhecer em toda a sua extensão, aos chilenos e ao mundo, os horrores praticados pela ditadura militar e pela adopção da tortura e do horror como uma política de Estado no período compreendido entre 1973 e 1990.

*

Como pode isto acontecer?
Como podem tantos seres humanos, seja em nome de um Deus seja em nome de um líder, praticar actos desta indescritível barbárie?

*

Stanley Milgram, professor de psicologia social na Universidade de Yale, levou a cabo em 1974 uma experiência com o objectivo de estudar a «Obediência à Autoridade»:

Entre pessoas comuns (operários, estudantes, secretárias, empresários, lojistas, etc.) foram recrutados voluntários a quem foi atribuído o papel de "professores".
Esses “professores” foram instruídos a aplicar choques eléctricos de intensidade crescente (de 15 a 450 Volts) num outro indivíduo (que estava amarrado a uma cadeira com eléctrodos numa sala adjacente), e que era designado "estudante".

Os choques seriam administrados todas as vezes que o "estudante" errava uma resposta a um questionário previamente determinado.
Milgram tinha explicado aos "professores" recrutados que o objecto daquele estudo residia precisamente nos efeitos da punição sobre a memória e sobre aprendizagem.

Como é óbvio, o "professor" não sabia que o "estudante" da pesquisa era afinal um actor, que convincentemente interpretava e manifestava desconforto e dor a cada aumento da potência dos “choques eléctricos” que lhe eram pretensamente infligidos.

O resultado da experiência foi absolutamente perturbador e mais “chocante” que qualquer voltagem aplicada:
- Nada menos do que 65% das pessoas envolvidas – os "professores" – chegaram mesmo, e sem qualquer hesitação, a administrar ao "estudante", sob ordens do cientista (que na experiência representava a “autoridade”) os choques mais potentes, dolorosos (de 450 volts) e claramente identificados como perigosos e... potencialmente mortais!

E todos os "professores" - mas todos eles - administraram pelo menos 300 Volts!

Em muitos casos houve "professores" que a determinada altura da aplicação dos choques eléctricos se preocuparam com o bem-estar do "estudante" e até perguntaram ao cientista quem se responsabilizaria caso algum dano viesse a ocorrer.
Mas quando o cientista os descansou, afiançando-lhes que assumiria toda e qualquer responsabilidade do que acontecesse e os encorajou a continuar, todos os "professores" persistiram na aplicação dos choques com as voltagens mais elevadas, mesmo enquanto ouviam gritos de dor e súplicas dos “estudantes” para que os parassem.

*

Entretanto, foi feita uma experiência laboratorial semelhante, desta vez com macacos-rhesus.

Nessa experiência (sem dúvida absolutamente tenebrosa, diga-se de passagem), os macacos eram colocados em jaulas próprias onde só recebiam alimento se puxassem uma determinada corrente.
Contudo, sempre que puxavam essa corrente era-lhes proporcionada comida, mas simultaneamente era infligido um violento choque eléctrico a outro macaco-rhesus, cujo sofrimento poderiam então observar através de um vidro espelhado.

Passado muito pouco tempo todos os macacos se aperceberam de como tudo funcionava e de que era precisamente o seu gesto de puxar a corrente que, enquanto lhes garantia a comida que pretendiam, era também ao mesmo tempo a causa do sofrimento do outro macaco.

Acontece que logo que faziam essa associação praticamente todos os macacos deixaram de puxar a corrente e preferiam passar fome a fazer sofrer um outro macaco, com quem nem sequer estavam familiarizados e que pertencia até a uma tribo diferente.

Numa ocasião e mesmo ao fim de um longo tempo de fome, os cientistas observaram que, no máximo, somente 13% dos macacos acabavam por puxar a corrente.

Alguns chegaram ao ponto de quase morrer de fome; mas nunca mais puxaram a corrente!

*

É, de facto, perturbadora a comparação entre as duas experiências.

Porque, para já, ela demonstra que as mais básicas noções de ética são conaturais aos indivíduos, mesmo aos animais, ainda que sejam nossos «primos».

Demonstra ainda que essa ética é racional, porquanto decorre de princípios de civilização e de necessidades práticas de convívio social e também de interacção individual.

Demonstra, finalmente, que essa ética, que é racional, prática e civilizacional só cede perante princípios de irracionalidade, sejam de ordem religiosa ou de ordem política e que, quantas vezes mascarados de princípios de ordem “moral”, acabam por ser acatados e aceites por tantas pessoas, que acriticamente lhes passam a obedecer cegamente, pugnando até pela sua imposição aos demais cidadãos.

É esta “obediência”, firmada em primeiro lugar na ausência de um consciência individual, e que é irracional e cega a qualquer noção de ética e até à mais básica dignidade humana, que leva às barbaridades praticadas pelos Homens.
Seja em nome de uma ideologia, de uma política e até mesmo de uma religião;
Seja nas ditaduras latino americanas, na União Soviética, na Alemanha de Hitler, ou noutro país qualquer, até mesmo em Portugal.

E que conduz ao Holocausto ou aos Gulags e ao extermínio de milhões de pessoas.
Que conduz a uma Inquisição tenebrosa ou a um terrorismo frio e sem rosto que torturam e matam em nome de Deus.

As ditaduras podem ser instituídas por uma “Junta Militar”, por uma religião, ou por um qualquer punhado de indivíduos que assumiram num país uma tal concentração de poderes que lhes permite a prática impune de tudo o que lhes vem à ideia.

Mas só é possível – sejamos claros – com a inexplicável complacência e com a injustificável tolerância para com os mais imbecis critérios de irracionalidade, que mais não significam do que uma autêntica cumplicidade de toda a estrutura da sociedade.
De todos nós!

De facto, Stanley Milgram repetiu a sua famosa experiência em mais de uma dezena de outros países, de todos os continentes, sempre com resultados absolutamente idênticos.
Do Chile de Pinochet ao Cambodja de Pol Pot, passando pelo Portugal da Pide e dos Tribunais Plenários, será talvez a “obediência”, a "falta de sentido crítico" e a irracionalidade com que acatam determinações políticas ou religiosas, que explicam por que motivo pessoas comuns, colocadas em determinadas circunstâncias e sob a influência de uma autoridade – política, ideológica ou religiosa – que nem sequer se lembram de questionar (e que antes procuram até impor aos outros), sejam capazes de cometer os crimes mais hediondos.

E é até irónico que virtudes humanas como a lealdade, a solidariedade, o sacrifício próprio, a disciplina ou o amor ao próximo, e que tanto valorizamos, sejam as mesmas propriedades que também criam pessoas homofóbicas, misóginas, racistas ou xenófobas ou que as transformam em autênticas máquinas destrutivas de guerra, corrupção e morte, e ligam homens e mulheres a princípios, ideologias ou religiões repulsivos e perversos.


Ideologias e princípios, quer políticos quer também religiosos que são, ainda hoje, cega, acrítica e incondicionalmente apoiados e irracionalmente seguidos por tantas e tantas pessoas.


É pois a este planeta, habitado pelos humanos, que desejo um bom ano de 2008!




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