quarta-feira, 18 de julho de 2007

 

A Liberdade de Culto



Ninguém contestará que a liberdade de consciência, de religião e de culto é um direito absolutamente fundamental e inalienável de todos os cidadãos.
Em Portugal esse direito merece mesmo expressa consagração constitucional (artigo 41º).

Quer isto dizer que não só é garantido o direito fundamental a que cada cidadão tenha a sua , mas também que a exerça em liberdade.
Ou seja, que a «pratique», através de um culto, e que conduza e determine livremente a sua vida em função dessa mesma fé e dos ensinamentos e dos princípios religiosos que lhe estão subjacentes.

Se esse cidadão for um cristão, por exemplo, ele deverá ter garantido direito ao exercício da sua fé em plena liberdade, tal como o mesmo lhe é determinado – e por ele aceite – no livro sagrado dos cristãos: a Bíblia.

Isto é, sem dúvida, um facto incontestável.
A fé de todas as pessoas tem de ser respeitada!
É obvio!
Será?...

Ora bem:
O «Houston Chronicle» noticia que no estado do Texas, nos Estados Unidos da América, um cidadão de seu nome Terry Mark Magnum, que afirma ter estudado a Bíblia durante «milhares e milhares de horas», um belo dia decidiu esfaquear mortalmente outro cidadão, Kenneth Cummings, de 46 anos de idade, simplesmente porque este era homossexual.

Mas explicou porquê:
Diz ele que sinceramente pensa que agiu correctamente porque acredita que foi chamado por Deus para ser um profeta.
E que foi Deus quem lhe ordenou que matasse este homem, uma vez que ele era homossexual, porque a «perversão sexual» é o pior dos pecados.
E sendo assim, «mandou-o para o Inferno»!

Ou seja:
O que é facto é que este homem, apesar de tudo, ao matar outro homem simplesmente porque ele era homossexual estava não mais do que... a exercer a sua fé.
E a fé de todas as pessoas tem de ser respeitada!

Por outras palavras, e como acima vimos, como cristão devoto, que até leu a Bíblia milhares de vezes e tudo, este homem não estava mais do que, como qualquer outro cristão, a praticar, a levar a cabo «o exercício da sua fé em plena liberdade, tal como o mesmo lhe é determinado no livro sagrado dos cristãos: a Bíblia».

Não vimos nós que a fé de todas as pessoas tem de ser respeitada?
E não vimos nós acima que isso é, sem dúvida, «um facto incontestável»?

Ou isso de «levar a cabo o exercício da sua fé em plena liberdade, tal como o mesmo lhe é determinado no livro sagrado dos cristãos: a Bíblia» será, afinal, um facto... contestável?

Qual é a diferença entre a «fé» de uma velhinha, que a exerce indo à missa aos domingos e a rezar uma centena de terços por dia, entre a «fé» de Bin Laden, que a exerce mandando atirar aviões contra edifícios ou ordenando atentados bombistas suicidas em mercados apinhados de gente, e entre a «fé» deste iluminado pela palavra de Deus escrita na Bíblia, e que a exerce, lhe obedece e a executa esfaqueando outro homem pelo simples facto de ele ser homossexual?

Qual é a diferença entre estas «fés»?
Não são todas elas iguais? Não são todas elas «um direito fundamental» dos cidadãos que as professam? Não merecem todas elas igual respeito?

Não?
É que se elas não são iguais, quem tem o direito de as distinguir umas das outras?

Quem tem o direito de escrutinar a fé de uma pessoa?
Quem tem autoridade para classificar uma «fé» como “boa” e outra como “má”?
Que critérios podem ser utilizados para distinguir uma «fé» de outra?
Critérios de ética, critérios de racionalidade, talvez?

Mas como distinguir ou analisar eticamente ou sob critérios de racionalidade uma determinação ou um sentimento irracional?
Porque no dia em que o fizéssemos, as religiões, todas elas, teriam provavelmente de ser... proibidas!
Mesmo a religião da velhinha que se limita a rezar o terço e a ir à missa ao Domingo ou que rasteja de joelhos no santuário de Fátima.
E essa proibição, todos concordaremos, seria inadmissível.

Mas qual é a ética e a racionalidade de uma Igreja que proíbe o preservativo mesmo quando isso contribui para a disseminação da SIDA, ou de alguém que se espoja e se amesquinha perante algo que nunca viu, e esfarrapa os joelhos ensanguentados enquanto se arrasta pelo chão na negociação da sua vida eterna?

Então, é simples:
A «ética» e a «racionalidade» não são para aqui chamadas!

A bem do direito inalienável desta velhinha a exercer a sua fé, ponhamos de lado a ética e a racionalidade!
E deixemos a velhinha em paz a exercer a sua fé, sem que ninguém tenha autoridade para a escrutinar ou para lha questionar!

Mas, e quem atira aviões contra edifícios ou mata outro homem por ele ser homossexual não estará também a exercer a sua fé? Em liberdade?

Mas, dir-me-ão: neste caso haveria que salvaguardar os direitos de pessoas que foram mortas e que ninguém tinha o direito de matar. Não é a mesma coisa!

Não?
Quem disse???
Que critérios foram usados para fazer esta afirmação?
Critérios de ética? Critérios de racionalidade?

Mas não tínhamos já posto de lado a ética e a racionalidade para defendermos a fé da velhinha?
Mau:
Afinal a ética e a racionalidade são ou não são para aqui chamadas???

Não tínhamos já estabelecido lá em cima como «incontestável» – e para além de qualquer escrutínio de racionalidade – esse tal direito de um cristão ao «exercício da sua fé em plena liberdade, tal como o mesmo lhe é determinado no livro sagrado dos cristãos: a Bíblia»?
Não vimos nós que a fé de todas as pessoas tem de ser respeitada?

Mas é que, de facto, a Bíblia decreta sem apelo nem agravo a pena de morte para os blasfemos ou para os homossexuais. Fá-lo inequivocamente no Levítico (20:13), por exemplo.
E se isso vem na Bíblia, isso é uma questão de fé.
Do mesmo modo, o Alcorão determina a morte dos infiéis, dos apóstatas ou dos blasfemos.
E se isso vem no Alcorão, isso é uma questão de fé.

E a fé de todas as pessoas tem de ser respeitada!
A fé e o exercício e a prática dessa mesma fé!

Então em que ficamos?

Onde ficamos é simples:
É que, na verdade, para um cristão «o exercício da fé em plena liberdade, tal como o mesmo é determinado no livro sagrado dos cristãos: a Bíblia» não é, afinal, «um facto incontestável».
Não é um direito absoluto.
Ou seja, nem sempre a fé das pessoas tem de ser respeitada!!!

Recorrendo ao velho chavão, o exercício desse direito, ou seja, o direito de uma pessoa exercer a sua fé e de seguir as determinações do livro sagrado da sua religião cessa, termina precisamente quando se iniciam os direitos das outras pessoas.

É por isso que ninguém no seu juízo perfeito defenderá que um homem tem o direito de matar outro homem, só porque é cristão e o outro homem é homossexual.
Nem mesmo que essa «pena de morte» esteja «decretada» na Bíblia.

O raciocínio, já vimos, é muito simples: até mesmo o direito fundamental dos cidadãos à sua liberdade de consciência, de religião e de culto tem de ceder quando em confronto com os direitos das outras pessoas, direitos esses que têm de ser salvaguardados e defendidos dos fanatismos religiosos que pretendem impor-se-lhes.

Numa palavra, a fé e a religião estão, sim, sujeitas ao escrutínio da ética e da racionalidade!!!

E o primeiro e o mais próximo garante deste princípio é precisamente a laicidade do Estado. Porque nenhum Estado pode ser verdadeiramente democrático senão for inquestionavelmente laico.

Só um completo e perfeito imbecil pensará o contrário; porque aí estará a defender que alguém pode livremente matar um homossexual ou atirar um avião contra um edifício se o estiver a fazer no exercício da sua fé.

Pois é:
De facto, só um completo e perfeito imbecil pensará o contrário.
Só é pena que tanta gente pense, efectivamente, o contrário!

E que persista em impor aos outros os seus dogmas e os seus fanatismos religiosos.

Por exemplo quando se fala dos direitos dos homossexuais, incluindo o reconhecimento do seu direito a casarem-se civilmente, da persistência na proibição do uso do preservativo, mesmo que isso signifique a morte de milhares de pessoas, ou na proibição de quaisquer outros métodos contraceptivos, da resistência a uma eficaz e competente educação sexual nas escolas, só porque meia dúzia de tarados sexuais alucinados pela castidade que lhes é imposta continua a considerar o sexo uma coisa aberrante, pecaminosa e «contra-natura», a imposição de critérios de «moralidade» à investigação científica, como quando se trata do estudo de células estaminais, a proibição de todas e quaisquer as formas de aborto, mesmo em caso de perigo de vida para a mulher grávida, a recusa em extraditar do Vaticano membros do clero com mandatos de captura internacional acusados de homicídio ou de pedofilia...

A liberdade de exercício de um culto religioso deve ceder quando em confronto com os direitos das outras pessoas???
Sim, sem dúvida!
Só é pena é haver por aí tantos imbecis que pensam precisamente o contrário!...




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