segunda-feira, 23 de abril de 2007

 

O Ópio dos Intelectuais



«O Ópio dos Intelectuais» é o título da última crónica de João Carlos Espada no «Expresso» do passado sábado.

Se das crónicas de João Carlos Espada que leio regularmente no «Expresso» alguma coisa se pode retirar é a persistência – semana após semana – com que este brilhante articulista faz citações de «autores da moda», como quem acha que lhe fica bem conhecer ao menos os seus nomes, mesmo que não perceba patavina do que eles dizem.
Vai daí, entra em raciocínios ridiculamente redondos que procura fundamentar em citações sem qualquer contexto.
E o resultado só podia ser um: é o Espada acabar a nadar nas águas turvas do fundamentalismo religioso.

Assim, e sempre coerente, logo com a escolha do subtítulo de mais uma das suas brilhantes crónicas o bom do João Carlos nos dá a antever o que aí vem, e desata logo à espadeirada quando diz:
«Cabe aos ateus explicarem porque deveria a sua ideologia particular receber a chancela do Estado».

Devia o Espada mudar o cilício de perna antes de se pôr a escrever.
Mas quem é que lhe disse que os ateus querem que a sua «ideologia particular» receba a «chancela do Estado»?
E que raio é isso dessa «chancela do Estado» que ele diz que os ateus querem?

O João Carlos não explica. Porque, como é óbvio, nem sequer sabe o que isso é!
Mas resolve fingir que sabe quando diz:
«Uma "nova" moda percorre a Europa: a moda do ateísmo militante».

É então que a indignação do João atinge o seu auge: então não querem lá ver que há por aí por essa Europa fora ateus a dizer que Cristo nunca existiu e ateus a fazerem comícios de propaganda contra a religião? Há até mesmo uma Universidade em Caen que tem uma doutrina oficial chamada «hedonismo ético» que recebe subsídios do Estado francês!

Mas se o João Carlos Espada fosse coerente e se fosse intelectualmente honesto, devia ter tido, antes de mais, a correcção ética e a verticalidade deontológica para com o editor que lhe paga as suas crónicas semanais de ter ido consultar um dicionário qualquer para ver se aprendia o significado da palavra «LAICIDADE».
Que o João Carlos não sabe. Nem quer saber!

Porque se quisesse saber, se soubesse e se fosse intelectualmente honesto, ao mesmo tempo que brama contra os ateus, contra a sua militância, contra os seus comícios, contra os subsídios às Universidades «hedonistas» e até contra essa coisa da «chancela do Estado» que acusa os ateus de quererem, o Espada tinha feito outra coisa.
Tinha feito uma crónica coerente, e assim bem portuguesa, desta vez a crocitar contra os subsídios à Universidade Católica, contra as perigosas procissões religiosas comicieiras nas festas católicas das aldeias, e contra o proselitismo criminoso das homilias de campanha eleitoral e contra quem ninguém faz nada.
E depois, não fosse o Diabo tecê-las, ainda defendia a radical e imediata revogação da Concordata, não vá ela abrir um qualquer infernal precedente, não vão ainda os ateus utilizarem-na como pretexto para defenderem também para si uma qualquer... «chancela do Estado».

Mas o Espada continua, com as suas palavras cortantes como alfanges:
«O principal apelo popular do ateísmo actual parece residir na sua alegação de que a fonte do ódio e da intolerância reside na religião...».

E é aqui que o delírio de João Carlos Espada atinge o seu auge.
Não faço ideia se o bom do Espada partilha de algum dos desportos cada vez mais populares entre os católicos como a auto flagelação ou a castidade.
É que, pelos vistos, tanto uma como a outra alucinam de forma semelhante.

Mas, pelo menos, deve ter sido neste ponto que deu mais uma voltinha ao cilício que traz na perna.
Porque, logo a abrir, e para deixar bem demonstrado que a religião nada tem a ver com a intolerância de que os ateus a acusam, João Carlos Espada apela à mais educada, polida e fina ironia para dizer que essa injusta acusação tem sido repetida «pelo reputado filósofo Elton John», que ele não conhece como pessoa, mas que sabe bem que é cantor e que é... homossexual.

E então, já depois de cabalmente demonstrada a tamanha injustiça da acusação de intolerância, o Espada põe-se agora a nadar em águas mais profundas.

E para que não se diga que só faz citações dos outros, o bom do João Carlos aventura-se agora nos delicados meandros do raciocínio e diz:
«Como explicar, nesse caso, que os dois grandes totalitarismos do século XX, o nacional socialismo e o comunismo, tenham sido ateus?».

De facto é precisa muita paciência para aturar esta gente!
O João Carlos Espada devia ler mais. Chego até a pensar que as citações que faz recorrentemente nas suas crónicas são tiradas daqueles bocadinhos no final dos artigos das «Selecções do Reader’s Digest»!

Porque, em primeiro lugar, o João Carlos devia saber que o Hitler não era ateu. Mesmo que resolva repeti-lo muitas e muitas vezes.
Mas não é isso que está em causa, pois até podia muito bem tê-lo sido, quero lá saber.
Como também não está em causa o Hitler e o Estaline terem os dois usado bigode, porque isso não faz dos homens que usam bigode potenciais ditadores assassinos.

O que está em causa é que as ditaduras sanguinárias do século XX, como a nazi ou a comunista, são responsáveis, sim, por dezenas de milhões de mortes e ainda pelo incomensurável e indizível sofrimento de centenas de milhões de pessoas, mas tudo isso em nome de um fanatismo ideológico muito concreto que se queria ver implementado e sobreposto aos das outras pessoas.

Porque é precisamente dos fanatismos ideológicos - sejam políticos, sejam religiosos - que resultam as guerras, as cruzadas, as ditaduras, os autos de fé, as polícias políticas, os campos de concentração e os Holocaustos.
E então, sim: os fanatismos ideológicos são todos a mesma choldra!!!
Sejam políticos!
Sejam religiosos!

Alguém saberá dizer exactamente quantas centenas de milhões de pessoas foram, ao longo da História, torturadas e chacinadas em nome de Deus?

Só que, entretanto, nenhuma morte é feita em nome do «ateísmo».
No meio da sua loucura torcionária, até mesmo Estaline permitiu a coexistência de inúmeras igrejas (enquanto destruiu centenas de outras, sim) e tolerou que nelas se praticasse regularmente um culto.

Nunca nenhum ateu amarrou uma pessoa a um poste e lhe deitou fogo com o simples pretexto de que ela era um «crente», assim tal qual fosse um bom e fiel católico a imolar pelo fogo um judeu ou um blasfemo, ou uma mulher acusada de bruxaria.

É pena que o João Carlos Espada não saiba isto.
Mas o que é mais pena ainda, é aquilo que o João Carlos Espada sabe, mas não diz.
Só porque quer deixar bem demonstrado que a intolerância e o ódio nada têm a ver com a religião, ao mesmo tempo que se refere aos «grandes totalitarismos» do século XX o João Carlos Espada finge que se esquece dos... «pequenos totalitarismos».

É de facto absolutamente lamentável que João Carlos Espada depois de falar dos «totalitarismos ateus», porque os seus líderes foram ateus, não tenha a dignidade intelectual de falar também, então, nos «totalitarismos religiosos» ou teístas, quando os seus líderes são crentes.
Onde quer João Carlos Espada chegar quando finge que desconhece as ditaduras de inspiração islâmica, da Arábia Saudita ao Irão e quando finge que se esquece das ditaduras de inspiração católica, como as de Portugal, Espanha, Itália, Brasil, Chile, Argentina, Venezuela?...

Mas é ao terminar a sua crónica que o João Carlos Espada dá o seu melhor.
Apesar de tudo, se compararmos com o que diz no seu último parágrafo, até quase se podia dizer que até aqui o João Carlos até nem ia nada mal.

Veja-se esta pérola, este diamante em bruto do raciocínio intelectual:

«No plano filosófico, o ateísmo encerra dificuldades enormes – à luz da razão.
«Uma, crucial, reside na colossal ambição do racionalismo dogmático que subjaz ao ateísmo: a de que a razão pode fornecer pressupostos isentos de pressupostos.
«Mas a razão não consegue explicar porque existe algo em vez de nada.
«Em rigor, o ateísmo acredita que sabe, mas não sabe que acredita.
«Neste sentido, como escreveu o saudoso Raymond Aron, limita-se a ser o ópio dos intelectuais».

E é isto.
Repararam em mais uma citação, desta vez do «saudoso» Raymond Aron?...

Pois bem:
Como resolveu então filosoficamente o João Carlos Espada as «enormes dificuldades» que o ateísmo atravessa? Que resposta deu esta mente brilhante a essas enormes dificuldades?

É simples:
Logo em primeiro lugar, o João Carlos diagnosticou ao ateísmo uma coisa a que chamou a «colossal ambição do racionalismo dogmático».
Vai daí, não hesita: infectado com esta doença, o ateu fica a pensar que a razão pode fornecer «pressupostos isentos de pressupostos».
E o João bem sabe que «a razão não consegue explicar porque existe algo em vez de nada».

Não é simplesmente brilhante?
Não é fantástico como o João Carlos Espada, numa simples penada, num pequeno parágrafo, deita por terra todo o ateísmo e desmascara «as enormes dificuldades que o ateísmo atravessa no campo filosófico»?
Como é injusto este mundo, em não reconhecer o gigantesco valor deste filósofo de excepção.
Ah! Como é ingrata a Comissão Nobel!!!

Assim sendo, e não sem antes nos revestirmos de toda a piedade cristã a que pudermos deitar mão, só nos resta observar os escombros do que restou do ateísmo, agora por completo filosoficamente desmoronado, depois do João Carlos Espada ter indicado o caminho das suas «enormes dificuldades à luz da razão».

Mas o João Carlos Espada não se limita a derrubar e a desmoronar as outras filosofias.
Como grande filósofo que é, João Carlos Espada aponta-nos um caminho novo, uma nova filosofia agora completamente isenta de «dificuldades à luz da razão».

E será então aqui que o João Carlos Espada, em contrapartida, nos proporá:
Para já, em vez da colossal ambição do «racionalismo dogmático», o João Carlos decerto nos apontará o caminho da «fé».
E é então aqui que substitui o ateísmo e o racionalismo pelo... irracionalismo!
E é assim, pelos vistos, que o nosso João Carlos defende uma filosofia nova, já completamente despojada de «ambição» e inteiramente liberta dos pecados e dos vícios do racionalismo, esse pecado mortal: nada mais nada menos que o «Irracionalismo Dogmático»!

Mas, depois de nos apontar esse novo rumo filosófico – o irracionalismo – o Espada não fica por aqui.
Nem pensar!
E lá vem ele outra vez: depois de desmascarar o ateísmo na praça pública, o João Carlos não deixa que alguém continue a pensar que «a razão pode fornecer pressupostos isentos de pressupostos».

E não vá alguém dizer, ou ousar sequer pensar, que, afinal, ele não faz a mínima ideia do que é o ateísmo, o João Carlos Espada lá continua, escolhendo palavras que, como ferros em brasa, como fogueiras em autos de fé, imolam cada um dos ateus deste mundo e os remetem para um canto obscuro da História da Filosofia.
E diz ele:
«Mas a razão não consegue explicar porque existe algo em vez de nada»!

E é então aqui, quando depois de tanto matutar não consegue explicar «porque existe algo em vez de nada» e como é que há «pressupostos isentos de pressupostos», mas só depois de mais um conveniente estorcegão ao cilício, claro está, que João Carlos Espada descobre... Deus!

E, então, finalmente, cá está a resposta para haver «algo em vez de nada» e para os tais «pressupostos isentos de pressupostos»!
E a resposta é... está-se mesmo a ver: o irracionalismo!

É lindo!
E pensar que antes disto havia gente a pensar que o João Carlos Espada não percebia nada disto e que não tinha a mínima noção filosófica do que é o ateísmo!

Mas que não se pense que o João Carlos Espada fica por aqui.
Não!
Porque qualquer bom filósofo, depois de marcar a História com o ferro indelével do seu nome, deve sempre escrever um epitáfio à filosofia derrotada, de preferência com um jogo de palavras, se possível até com uma pequena cacofonia.

E cá está ele:
«Em rigor, o ateísmo acredita que sabe, mas não sabe que acredita».

E cá estou eu, ateu, completamente deitado por terra.
Inteiramente rendido à imensidão de João Carlos Espada!

Nem queria crer: logo eu que, sem sequer saber, pensava que acreditava que sabia, mas que afinal não sabia que acreditava!
Estou deslumbrado!
Rendo-me!

A partir de agora, quando me perguntarem no que acredito ou que filosofia professo, responderei sem hesitar:
- Sou um Espadista!

E quando me perguntarem o que é que isso quer dizer, respondo de um só fôlego:
«Porque, como o João Carlos Espada, defendo que o mundo não se explica com a ciência ou com qualquer outro tipo de critérios racionais; eu cá sou um irracionalista! Um irracionalista dogmático!
«E nada de confundir um irracionalista com um imbecil ou até com um animal irracional. Porque há diferenças. Diferenças que são óbvias, embora agora, assim de repente, não me lembre de nenhuma».

E se me perguntarem que resposta filosófica tenho para explicar como é que há «algo em vez de nada» e para os «pressupostos isentos de pressupostos», eu cá respondo:
- Já disse; sou um Espadista!

E se me tornarem a perguntar o que é que isso quer dizer, eu torno a responder:
«Já disse, sou um irracionalista!
«Acredito e dou não só como filosoficamente coerente e lógico mas, muito mais do que isso, dou como lúcido que a resposta é... Deus!»

E se me pedirem para demonstrar a lucidez desta minha nova filosofia, eu respondo:
«Como qualquer bom Espadista, eu defendo que Deus é a resposta para o «algo em vez do nada».
«E que é precisamente esse mesmo Deus quem nos dá a graça de termos a "inteligência" suficiente para... não ousarmos perguntar quem por sua vez o criou... a ele!

«E também a lucidez de acreditar que um dia, sendo esse mesmo Deus um e três ao mesmo tempo, resolveu vir a este planeta.
«E então um desses três Deuses, embora Deus seja só um, mas que, sendo um desses três (embora todos três sejam só um), se chamava Espírito Santo, engravidou uma mulher virgem, que ainda assim continuou virgem.
«E então, talvez nove meses depois, nasceu Deus, ou seja nasceu uma criança filha dela própria, ou seja, que tinha engravidado a sua própria mãe, e que era simultaneamente pai de si próprio.
«Nessa forma de homem, agora chamado Jesus, Deus cresceu e resolveu morrer por ordem de Deus, isto é, de si próprio. Por outras palavras, suicidou-se.
«Depois disso, subiu ao Céu, em corpo e alma, onde está agora sentado à direita de Deus pai. Por outras palavras, está sentado à direita de si próprio, com o Espírito Santo a esvoaçar em forma de pomba por ali perto, embora todos eles sejam só um. Embora ao mesmo tempo sejam três, tudo isto, claro, sem prejuízo de serem só um».

E pronto!
E foi assim que me deixei da porcaria do ateísmo e do racionalismo.
Já nem sequer acredito na lei da gravidade. Ou na lei da atracção universal. Claro está que do racionalismo do Newton só poderia sair porcaria!
O evolucionismo?
Pfff!!! Outra das balelas racionalistas dos ateus!

Toda a gente sabe que o mundo foi criado «do nada» por Deus, em seis dias, há qualquer coisa como 4 mil anos, segundo os melhores cálculos da genealogia bíblica.
Prova disto?
Que raio de pergunta: está-se mesmo a ver que a prova disto é tão coerente, lógica e lúcida que reside precisamente na irracionalidade da própria afirmação!...
Se assim não fosse, como é por demais óbvio, tudo isto passaria – como o ateísmo passou antes de ser denunciado pelo Espada – a encerrar, no plano filosófico, «enormes dificuldades»... à luz da razão...

Estou agora, por fim, completamente desintoxicado dessa coisa que «o saudoso» Raymond Aron (tão brilhantemente citado por João Carlos Espada), chama «o ópio dos intelectuais».
Sou, finalmente, um irracionalista!
Mas um irracionalista dogmático e, finalmente, sem dificuldades - à luz da razão!

Um dia, talvez um dia, se faça justiça e se venha a fazer luz.
Um dia virá em que se passará o reconhecer o verdadeiro significado e o alcance destas palavras de Jesus Cristo, citadas no evangelho de Mateus (10:34):
- Não cuideis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer paz, mas espada.

Talvez um dia a interpretação destas palavras seja expurgada de qualquer sentido ou conotação bélica ou violenta.
E que não era nada disso que nos queria dizer o bom Jesus.
Talvez um dia se reconheça que Jesus Cristo queria dizer-nos que um dia seríamos contemplados com uma nova e brilhante filosofia.
E que, com a palavra «espada» Jesus Cristo se referia, obviamente a... João Carlos Espada!!!




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