segunda-feira, 23 de outubro de 2006

 

Não Sejamos Maricas



É este o título que João Gonçalves dá a dois posts no seu Blog «Portugal dos Pequeninos», onde elogia a «complexa simplicidade» octogenária que Agustina Bessa Luís demonstra numa entrevista ao semanário «Sol» onde fala de «costumes».

Como as minhas compras experimentais do semanário do arquitecto já terminaram, aqui recorro ao "copy/paste" de uma passagem de um daqueles posts:

«Perguntada acerca de casamentos entre pessoas do mesmo sexo, Agustina afirma que "falar de casamento entre pessoas do mesmo sexo é distorcer o seu sentido".
«Mais. "Ao longo da vida conheci homossexuais brilhantes a nível intelectual que não eram capazes de encarar o casamento. Uma coisa são os homossexuais, outra são os maricas (...) Os maricas querem todas essas prerrogativas, como o casamento. Os homossexuais não...
«Todos devem ter os mesmos direitos, mas para isso não é preciso falar de casamento».

Com a Agustina de um lado e uma sondagem de opinião do outro, o João Gonçalves deslumbrou-se!

Vai daí, ora diz que o casamento homossexual não seria preciso para nada se a Lei 7/2001 (sobre as uniões de facto) fosse regulamentada, ora, de bicos de pés, quer ombrear com a escritora e diz:
- «Em matéria de costumes, já estou como a Agustina. Não sejamos maricas».

Que o João Gonçalves e a Agustina Bessa Luís não queiram ser maricas, é lá com eles.
Mas talvez lhes ficasse bem não emitirem opiniões precipitadas e assim tão obviamente deformadas por preconceitos homofóbicos.

Não que os dois não sejam livres de terem preconceitos homofóbicos.
Estamos num país livre: se os tiverem, isso é lá com eles.

Mas ao menos assumam esses preconceitos e essa homofobia com verticalidade e tenham a honestidade intelectual de não os disfarçarem debaixo da capa de frases bombásticas e aparentemente bem sonantes como:
«Uma coisa são os homossexuais, outra são os maricas (...) Os maricas querem todas essas prerrogativas, como o casamento. Os homossexuais não... Todos devem ter os mesmos direitos, mas para isso não é preciso falar de casamento».

Imagine o João Gonçalves esta simples história (se quiser depois conte-a à Agustina), e faça-me o favor de a considerar rigorosamente verdadeira, embora sob a capa de nomes supostos.
Aqui vai:

O Manuel é um alto quadro de um banco.
O Joaquim é funcionário judicial.
São os dois homossexuais e começaram a viver juntos há quase 50 anos.

Viviam numa casa comprada por ambos com empréstimo hipotecário, embora a casa estivesse em nome do Manuel que, como bancário, tinha melhores condições de crédito.
O recheio e os equipamentos da casa, várias vezes renovados ao longo das décadas, tinham sido comprados por ambos, em conjunto.
Nesse quase meio século viveram em união de facto, em perfeita economia comum, numa amizade e num companheirismo invejável para quem os conhecia.
Já aposentados os dois, tinham a vida próspera e desafogada que as duas reformas lhes proporcionavam, principalmente a reforma do Manuel, muito superior à do Joaquim.
Como o empréstimo da casa estava já pago há muitos anos (pela economia comum de ambos), até se podiam dar ao luxo de fazerem regularmente cruzeiros por esse mundo fora.
Numa palavra: eram felizes.

Mas ao fim de quase meio século de vida em comum, de uma existência partilhada em tudo, o Manuel morreu subitamente.

A única família do Manuel eram dois sobrinhos que viviam em Trás-os-Montes (salvo erro em Mirandela), que ao longo dos anos sempre se haviam recusado sequer a pronunciar o nome do tio que era «paneleiro».
Nem sequer foram ao seu funeral, tal o desprezo que sentiam pelo «tio paneleiro».

Mas no próprio dia do funeral, já à noite, foram a casa do tio.
A primeira coisa que fizerem foi correr com o Joaquim, «o outro paneleiro» que vivia com o tio, e puseram-no fora de casa com a roupa que tinha no corpo.
Perante a resistência que ofereceu, ainda o agrediram selvaticamente.

O Joaquim foi logo à polícia.
Mas não havia nada a fazer. Os sobrinhos eram os únicos herdeiros do Manuel. A casa era agora deles.
Quanto às agressões, que testemunhas havia?

Nessa noite o Joaquim dormiu nas escadas do prédio.
Tinha 76 anos e a meio da noite, deitado no chão frio de um vão de escadas, acabara de descobrir que não tinha nada de seu.
Restava-lhe, felizmente, a sua pensão de funcionário judicial aposentado há muitos anos, mas que nem sequer lhe dava para comprar outra casa.
E que banco lhe ia emprestar dinheiro com aquela idade?

Daí a uns dias, por intermédio de uns amigos comuns, lá conseguiu que os sobrinhos do Manuel, num gesto de magnânima boa vontade, lhe devolvessem a sua própria roupa.
Nunca mais viu os discos ou os livros.
Nem sequer as fotografias, que recordavam toda uma vida. Disseram-lhe que os sobrinhos as tinham queimado.

Vive agora sozinho num quarto alugado miserável, e gasta na renda quase metade da sua reforma.

O meio século, todos aqueles anos em que viveu em união de facto com o Manuel de nada lhe valeram.
Não é herdeiro do Manuel e não se pode habilitar à sua pensão de aposentação.
Os sobrinhos já venderam a casa e regressaram a Trás-os-Montes com o dinheiro que o «tio paneleiro» lhes deixou em herança.

E é esta a história.

Mas afinal parece que há uma esperança para o Joaquim.
O João Gonçalves e a Agustina Bessa Luís, na sua «complexa simplicidade octogenária», afinal têm uma solução para a vida do Joaquim.

Vá lá, João Gonçalves:
Nem que tenha de pedir ajuda à Agustina, ajude o Joaquim, e demonstre-lhe por A mais B que um verdadeiro homossexual, um homossexual «a sério» e que seja verdadeiramente «brilhante a nível intelectual», como diz a Agustina, não precisa do casamento para nada e que isso é só coisa de maricas.

Ajude lá o Joaquim, João Gonçalves.
Vá lá: nisto e em matéria de costumes, não seja maricas!




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