segunda-feira, 3 de julho de 2006

 

A Palavra de Honra



Conheço-o há muitos anos, e ele é, sem dúvida, um dos polícias mais conhecidos aqui da zona.

Não o via há já uns tempos quando o encontrei ontem no café.
Estava já com um bronze invejável, de calções, chinelas de dedo e imperial na mão.
Perguntei-lhe naturalmente:
- Já de férias?

Sorriu, deu um generoso golo na imperial e respondeu-me:
- Melhor do que isso, estou de baixa! Desde Março!
- De baixa? – Estranhei – Há tanto tempo? Está doente?
- Não! – respondeu como se eu fosse de outro planeta
E continuou a explicar-me como seu eu fosse uma criança de quatro anos:
- É que estou farto daquela gente. Como não me querem dar a reforma antecipada sem me cortar no ordenado, meti baixa.
- Meteu baixa, assim sem mais nem menos?
- Claro! Tenho um médico amigo que me arranjou uma dor aqui nas costas e pimba! Baixa com ele!

Portugal é de facto um país muito curioso com os seus costumes e tradições.
E uma das tradições mais interessantes é essa da baixa e do atestado médico.

Como toda a gente sabe, para se obter um atestado médico não é preciso sequer estar doente.
Mas isso é só um pequeno pormenor sem qualquer interesse.

Um atestado médico é um declaração feita por um médico, que é um português diferente dos outros pois recebeu poderes esotéricos para emitir documentos que, apesar de falarem da honra e da palavra de honra de quem os faz, toda a gente sabe que a maior parte das vezes são falsos.
Mas em que todo o país anda a fingir que acredita.

O atestado médico, depois de assinado e certificado pela palavra de honra do senhor doutor, reveste-se de características mágicas, pois torna o seu beneficiário apto a livrar-se das mais diversas agruras desta vida, quer sejam decorrentes de faltas ao trabalho ou a um julgamento, quer sirvam simplesmente para um estudante poder ir à segunda chamada do exame.

Às vezes um arguido falta ao julgamento ou a assiduidade e a produtividade dos trabalhadores podem estar a pôr mesmo em risco a sobrevivência de uma empresa e todos os seus postos de trabalho.
Mas o que se há de fazer? Todos eles «meteram atestado»!

Todos eles foram ao médico e pediram:
- Senhor doutor, preciso de faltar ao julgamento, o meu chefe anda a pôr-me a cabeça em água, fáxavor passe-me um atestado.
E o senhor doutor passa, claro! E ainda pergunta:
- Quantos dias precisa?
- Quinze já chegam senhor doutor!

Outras vezes, o trabalhador mete baixas sucessivas, mês após mês, até a entidade patronal não saber se o substitui se conta com ele.
E quando já tem a cabeça em água e lhe telefona para casa a perguntar, o trabalhador calmamente diz-lhe:
- Dê-me «os meus direitos» que eu vou-me embora. Se não quiser, eu por mim continuo a meter baixa.

Até há muito pouco tempo um Delegado de Saúde, muito pertinho daqui, passava atestados médicos para tudo e mais alguma coisa sem sequer ver as pessoas. Bastava deixar o bilhete de identidade com a empregada e ir lá buscar o atestado daí a umas horas. E pagar, claro! E não era nada barato, que o homem era o Delegado de Saúde, e tudo!

Quando comecei o estágio, uma das primeiras coisas que me ensinaram foi que para obter um atestado médico não havia nada mais simples: bastava ir ao senhor doutor que os passava em série dentro de um automóvel que lhe servia de consultório, e que diariamente estacionava em frente ao Tribunal da Boa-Hora.
Não fazia mais nada o dia todo, o bom do médico: só passava atestados médicos às pessoas que precisavam e que faziam bicha em frente à porta do lado do condutor, e que lá iam entrando e saindo do carro quando chegava a sua vez.

O atestado médico lá no fundo é a maior parte das vezes uma aldrabice, sim. E toda a gente sabe que é uma gigantesca aldrabice nacional.
Mas é uma aldrabice institucionalizada, e com isso não se brinca!

Embora toda a gente saiba que o atestado médico é muitas vezes falso, o que é verdade é que nada pode ser feito contra os seus poderes mágicos.
Como se de repente o que é falso tivesse misteriosa e inexoravelmente passado a ser verdadeiro, só porque está escrito num papel assinado e atestado pela palavra de honra de um médico.

Prova disso foi o recente escândalo dos 300 alunos que adoeceram todos ao mesmo tempo em Guimarães e não puderam ir às provas globais.
Toda a gente em Portugal sabia que não tinha havido epidemia nenhuma e que tudo aquilo era uma habilidade, a mesma aldrabice do costume, só que desta vez multiplicada por 300.
Mas como todos os alunos tinham os seus atestados médicos em ordem, o que lhes aconteceu a eles e aos médicos que lhos passaram?
Mas alguém tinha dúvidas?
Não aconteceu nada, claro está!

E toda a gente fala da assiduidade dos professores, e que os professores faltam muito.
Mas quando os professores faltam não metem atestado?
Então está tudo bem!

Por isso não é de estranhar que se há coisa que é característica dos portugueses é a sugestão amiga que não pode deixar de ser feita a alguém que desabafa connosco uma desavença qualquer com o patrão, com o encarregado ou simplesmente com o chefe lá da repartição:
- Mete um atestado, pá!

E lá vai o felizardo ao médico.
Ciente de que, se há alguma coisa certa neste mundo, é que virá de lá com toda a certeza munido do seu “salvo conduto”, com aquele aspecto sério e burocrático que lhe é conferido pela assinatura do médico e pela certificação de uma doença que nem é preciso saber qual é.

E que o médico solenemente atesta.
Atesta por sua honra, claro.
E com a honra de um médico toda a gente sabe que não se brinca!




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