segunda-feira, 6 de fevereiro de 2006

 

A União de Facto



Durante a exposição mediática do processo de casamento da Teresa e da Lena, ouvi muitas pessoas perguntarem-me porque motivo não se contentam os casais homossexuais com os direitos que a Lei portuguesa já dá às pessoas que vivem em união de facto, e persistem em casar-se como qualquer casal heterossexual.

Ouvi até um deputado e alto responsável partidário chamar a essa persistência um «capricho».
Ouvi outro a dizer que a questão não era prioritária e a resolvê-la com a convocação nacional de «um amplo debate».
Ouvi outro ainda a insultar a inteligência dos portugueses (incluindo aqueles que o elegeram) a dizer que «o Código Civil não proíbe o casamento a homossexuais; proíbe é o casamento entre pessoas do mesmo sexo».

Até vi Pacheco Pereira manifestar-se «indiferente a esta polémica» mas, apesar disso, a comparar o casamento à poligamia e até mesmo a dizer: «que é que se espera no “casamento” que não se tem na união de facto? A obrigação contratual de “fidelidade”?»

Ouvi o próprio ministro da Justiça a dizer que os agentes da administração pública estão «dispensados» de cumprir a Constituição da República Portuguesa.


Há, pelos vistos, um profundo desconhecimento por parte da generalidade dos portugueses do que significa a união de facto na nossa ordem jurídica.
Incluindo, lamentavelmente, os nossos deputados e altos responsáveis partidários e governamentais.
O que não os tem impedido de escrever e de dizer as maiores baboseiras à comunicação social.

Se há coisa com que tenho tido dificuldade em lidar em todo este processo é a imbecilidade do preconceito e a ignorância de certas pessoas.

Porque, na realidade, a vida de duas pessoas em união de facto não significa em Portugal praticamente nada!

A persistente falta de regulamentação de um verdadeiro e genuíno regime das uniões de facto (Lei n.º 7/2001 de 11 de Maio) significa que, na prática, os efeitos da vida em união de facto e os benefícios mútuos para os respectivos “companheiros” sejam, em comparação com os cônjuges unidos pelo casamento (passe o pleonasmo), basicamente (e chãmente explicados) os seguintes:

1 – Possibilidade de tributação conjunta em sede de IRS.
Contudo, talvez seja, no mínimo, um pouco sado-masoquista chamar a esta possibilidade um “benefício” já que dela resulta um concreto agravamento fiscal para os declarantes;

2 – Se, por exemplo, o marido for titular do direito ao arrendamento de uma casa com uma renda baixa, por sua morte o arrendamento transmite-se à mulher nas mesmas e precisas condições contratuais, incluindo o mesmo montante de renda.
Numa união de facto a companheira sobreviva tem somente direito de preferência a um novo arrendamento. Isto é, se a companheira sobreviva quiser permanecer na casa tem de igualar o montante da renda, qualquer que ele seja, que outras pessoas ofereçam ao senhorio.

3 – Num casamento, qualquer dos cônjuges pode sempre na sua pendência exigir judicialmente do outro uma contribuição para as despesas domésticas. Em caso de divórcio, o cônjuge que fique em má situação financeira poderá em muitos casos pedir alimentos ao ex-cônjuge.
Poderá até pedir-lhos muitos anos depois do divórcio.
No regime da união de facto não existe qualquer destes direitos.

4 – Em caso de divórcio, qualquer dos cônjuges tem uma palavra a dizer sobre o destino da casa de morada de família, ou até sobre a sua venda ou qualquer outra forma de alienação, ainda que tal casa seja bem próprio do outro cônjuge.
Numa união de facto, se a casa for somente de um dos companheiros, é sempre bom que ele acorde todos os dias bem disposto, pois pode bem, num abrir e fechar de olhos, espetar com o outro no meio da rua e pôr-lhe os tarecos à porta.
Ainda que durante anos e anos tenham partilhado as despesas e a economia familiar.

5 – Se um dos cônjuges morre, o outro cônjuge tem direito, como é sabido, a uma pensão de sobrevivência da Segurança Social.
Numa união de facto, se o companheiro sobrevivo quiser ter direito a essa mesma pensão de sobrevivência, tem de fazer três coisas:

a) intentar uma acção judicial contra o Centro Nacional de Pensões, expressamente com o objectivo de obter a condenação judicial deste organismo do Estado a pagar-lhe a pensão, que será pelo Tribunal quantificada;
b) demonstrar judicialmente que necessita dessa pensão para sobreviver, que não tem quaisquer outros meios de subsistência e, pasme-se, fazer prova de uma coisa chamada «incapacidade de subsistência»;
c) demonstrar que nenhuma das pessoas previstas no artigo 2.009º do Código Civil (basicamente toda a sua família) tem quaisquer possibilidades de lhe prestar alimentos.

Só então o Estado magnanimamente paga a pensão de sobrevivência ao companheiro sobrevivo.
Mas como há sempre um sobrinho que tem um emprego estável num lado qualquer, é, de facto, praticamente impossível obter a condenação do Estado a pagar a dita pensão.

6 – Para além disso, o casamento proporciona aos cônjuges o acesso a sistemas ou sub-sistemas de saúde e de segurança social.
Franqueia as portas de um hospital para um apoio eficaz a um cônjuge doente, possibilita o acompanhamento de um filho do outro cônjuge, seja hospitalar seja escolar, sem que ninguém faça perguntas.
No caso de uma doença incapacitante grave, o cônjuge é chamado a decidir sobre o desligar de uma máquina de suporte de vida, por exemplo.
Como é óbvio, numa união de facto não existe nada disto. Um companheiro de uma vida tem menos a dizer que um sobrinho que venha da terra e mande desligar a máquina só para receber a herança mais rapidamente.
E, quem sabe, para receber também o seguro de vida!

7 – Se ao fim de várias décadas de vida em comum um dos cônjuges morre, o cônjuge sobrevivo é herdeiro legitimário, tal como os filhos (ou, na falta destes, os pais), sendo-lhe até garantido um mínimo de um quarto da legítima da herança (em caso de haver quatro ou mais filhos) e mesmo um direito especial, por exemplo, a preferir na herança da casa que foi da família.
Numa união de facto, a companheira sobreviva poderá, no máximo, pedir «alimentos» à herança.
Mas gostava que me dissessem o que significa este direito na prática e quantas heranças deixadas por portugueses podem suportar o pagamento de uma pensão de alimentos a uma pessoa que deles careça.
O que é facto é que a companheira sobreviva não herda absolutamente nada, ficando até frequentemente à mercê da boa vontade dos parentes que no dia a seguir ao funeral vêm reclamar a herança do falecido.

Num caso concreto que me passou pelas mãos, lembro-me de dois sobrinhos que no dia a seguir ao funeral do tio arrombaram a porta da casa onde aquele tinha morado com a sua companheira (e onde tinham vivido em união de facto durante quase 40 anos) e, na sua ausência, fizeram um inventário detalhado dos bens de que queriam exigir-lhe contas.
Lembro-me que, para além dos electrodomésticos, das pratas, dos móveis, etc., um dos itens dos bens encontrados em casa que foi cuidadosamente relacionado, e cujo valor foi irredutivelmente reclamado à senhora pelos sobrinhos do falecido era: «meia garrafa de whisky VAT 69».
Ainda hoje essa senhora paga uma renda aos sobrinhos do ex-companheiro falecido pela casa que pensava que era sua.



Quanto aos «direitos» dos casais que vivam em união de facto, são basicamente estes.
Sinceramente neste momento não me lembro de mais nenhum...


Em conclusão:
Pode dizer-se que em Portugal o casamento homossexual não é um «capricho» ou uma questão «semântica».
E que já não é tempo de «amplos debates» sobre o assunto.
É que, na realidade, a lei praticamente não confere quaisquer direitos às pessoas que vivam em união de facto.
E os que confere são completamente vazios de sentido ou de significado prático.

É somente por isso que os casais homossexuais pretendem um regime igualitário – e constitucionalmente legítimo – para a sua vivência em comum.
E que só o casamento lhes pode trazer!

No que, sinceramente, deveriam ser seguidos por muitos casais heterossexuais que vivem em união de facto, e que não sonham nem fazem a mínima ideia da insegurança da situação em que actualmente vivem!





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