domingo, 13 de novembro de 2005

 

A Pernoita do Ícone



Teve lugar este sábado o ponto alto das realizações integradas no «Congresso Internacional para a Nova Evangelização» a decorrer em Lisboa, com a consagração de algumas ruas da capital a uma procissão que entupiu o trânsito de Lisboa.

De qualquer modo, e principalmente se pensarmos no número de países deste mundo onde isso não seria possível, foi bonito ver a manifestação e o pleno exercício da liberdade religiosa de tantos milhares de pessoas que acendiam velas, cantavam «avé Maria» e acenavam com lencinhos brancos à passagem de um ícone da mãe do seu Deus.

A imagem passará a noite a abrilhantar uma «vigília de oração mariana» que terá lugar na igreja de São Domingos.

É extremamente curiosa a escolha que a Igreja Católica faz da Igreja de São Domingos para a pernoita do ícone, integrada nas cerimónias desta «Nova Evangelização».
Sabendo-se que quem organiza estas cerimónias são pessoas inteligentes e conhecedoras, que pretendem sempre atribuir ao mais pequeno gesto e atitude um grande significado místico, a escolha da Igreja de São Domingos só pode ter sido feita como uma clara forma de comparação desta «Nova Evangelização» que agora tem lugar, com uma simbólica forma de reminiscência e de apelo à «Velha Evangelização» tão querida e saudosa para a Igreja Católica Apostólica Romana.


É que a igreja de São Domingos está intimamente ligada à forma de «evangelização» que a Igreja Católica sempre privilegiou ao longo da História: a eliminação pura e simples de quem não professa o mesmo tipo de rituais e cerimoniais de culto.

Mas que, ao fim ao cabo e se virmos bem, não passam do singelo cumprimento das determinações do livro sagrado dos cristãos e onde está inscrita a palavra de Deus: a Bíblia.
Diz assim a Bíblia no Deuteronómio (17:2-5):

«Quando no meio de ti, em alguma das tuas portas que te dá o Senhor teu Deus, se achar algum homem ou mulher que fizer mal aos olhos do Senhor teu Deus, transgredindo a sua aliança, que se for, e servir a outros deuses, e se encurvar a eles ou ao sol, ou à lua, ou a todo o exército do céu, o que eu não ordenei... então tirarás o homem ou a mulher que fez este malefício, às tuas portas, e apedrejarás o tal homem ou mulher, até que morra».

E a palavra de Deus é para cumprir, não é?

Deve ter sido por isso que no dia 19 de Abril de 1506 no decorrer de uma missa, precisamente na igreja de São Domingos, alguém com alguma over-dose de misticismo interpretou como um verdadeiro milagre divino um raio de luz que incidia sobre uma imagem de um santo qualquer.
Foi então que um homem mais desintoxicado do sobrenatural tentou dar uma explicação mais prosaica à coisa, e apontou para um vitral como a origem mais provável, embora miseravelmente terrena, do raio de luz que tinha escolhido tão santa figura para poisar.

O pior é que o homem era, ao que parece, cristão-novo.
E logo ali todos os cristãos-novos foram acusados de heresia e blasfémia.

O desmanchador de milagres já não saiu dali vivo: foi imediatamente linchado mesmo no solo sagrado da igreja de São Domingos.
Depois, uma turba enfurecida que foi crescendo rapidamente, resolveu pela primeira vez na História consagrar Lisboa à Virgem Maria e imbuídos de um espírito de «Nova Evangelização» levaram a cabo o maior “pogrom” de que há memória em Portugal.

Foi então que a população católica de Lisboa, incitada por monges dominicanos que aproveitaram para acusar os judeus de deicídio e de serem a causa da profunda seca que assolava o país, agora em piedoso e militante cumprimento das sagradas palavras de Deus que nos são transmitidas no Deuteronómio, massacrou impiedosamente milhares e milhares de cristãos-novos: homens, mulheres e até crianças.

A matança durou três dias!

Este massacre e a instigação clerical que se lhe seguiu foram primordiais para o crescente sentimento de anti-semitismo em Portugal. E que veio a culminar com o estabelecimento da Inquisição, que vigorou no nosso país durante quase três séculos: de 1540 a 1821.


Não há pois dúvida:
A igreja de São Domingos é, de facto, o local mais simbolicamente adequado para, nesta campanha de «Nova Evangelização», a mãe do Deus dos católicos passar a noite!




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