sexta-feira, 6 de maio de 2005

 

O Último Caso


O Dr. Miguel Trindade (vamos chamar-lhe assim), era um famoso advogado aqui duma das comarcas limítrofes de Lisboa.

Exuberante, extrovertido e «espalha-brasas», devia a sua fama mais à publicidade que fazia a si próprio do que à ciência jurídica de que era dotado e que, frequentemente, parecia colada com cuspo.

Mas o Dr. Miguel Trindade tinha outras particularidades: por exemplo, em vez de pedir aos clientes simples procurações forenses para os representar em juízo, pedia-lhes sempre procurações notariais com plenos poderes para tudo e mais alguma coisa.
Por isso, quando se concretizava qualquer transacção judicial formalizada numa escritura pública, o cliente nem aparecia: o Dr. Miguel Trindade representava-o plenamente.
Mas o que o Dr. Miguel Trindade não explicava era a persistente diferença que parecia sempre haver entre os números do negócio realizado e aqueles que eram transmitidos ao cliente.

Uma vez ganhei-lhe uma acção de algum relevo em que fui seu oponente. Como é óbvio, de imediato comuniquei as boas notícias ao meu cliente, alertando-o, contudo, para a probabilidade da outra parte vir ainda a recorrer.
Nessa mesma noite o meu cliente telefonou-me assustado: não me teria eu enganado? É que tinha surpreendido o Dr. Miguel Trindade num restaurante, a comemorar efusivamente com os seus clientes a vitória nessa acção. Até já lhes tinha cobrado os honorários correspondentes ao grande sucesso obtido.
Provavelmente planeava dizer-lhes mais tarde que eu tinha recorrido e ganho o recurso. Mas os honorários... esses já lá cantavam.

O último caso do Dr. Miguel Trindade é simples de contar:

Era uma acção de despejo em que o Dr. Miguel Trindade representava o senhorio.
Já no decorrer da acção, chegaram a acordo com o inquilino, um guarda da G.N.R. já aposentado: o inquilino nem contestava a acção e abandonava a casa no prazo de 3 meses; no acto da entrega da chave o senhorio pagava-lhe uma determinada quantia, equivalente hoje a cerca de 5.000 contos.
Simples!
Como era tudo gente de palavra nem sequer foi preciso escrever nada.
O Dr. Miguel Trindade ficou como intermediário do negócio e, por isso, o senhorio entregou-lhe logo o dinheiro, «em notas de banco», que ficou à sua guarda como garantia.
O guarda da GNR juntou então todas as economias da sua vida (cerca de 4.000 contos) e deu entrada para uma nova casa. Com os 5.000 contos que receberia do senhorio, pagaria um reforço desse sinal.
O remanescente do preço da casa seria pago por intermédio de um empréstimo hipotecário de 9.000 contos, o máximo que o banco lhe emprestava face aos parcos rendimentos proporcionados pela sua pensão.

No dia combinado, o inquilino entregou a chave da casa do senhorio no escritório do Dr. Miguel Trindade.
Mas nesse dia o inquilino não recebeu a quantia em dinheiro combinada, porque o Dr. Miguel Trindade, segundo explicou, tinha deixado acabar os cheques.
Nem nesse dia nem nos dias seguintes.
Nem sequer quando o inquilino lhe explicou que precisava urgentemente dos 5.000 contos para o reforço do sinal da sua casa nova, e que, se não o pagasse, perderia o sinal já dado, em que tinha investido todas as suas economias, o Dr. Miguel Trindade se condoeu.
Só quando o guarda da GNR explicou claramente que se não recebesse os 5.000 contos ficava com a família no olho da rua, sem casa e sem dinheiro, o Dr. Miguel Trindade foi finalmente claro: ninguém o tinha mandado ser parvo, pois não tinha ficado nada escrito e a acção de despejo nem sequer tinha sido contestada; agora, se ele queria o dinheiro, «que fosse receber ao Totta».

Nesse mesmo dia, o guarda da GNR esperou o Dr. Miguel Trindade à porta do restaurante onde almoçava todos os dias.
Quando o viu sair, aproximou-se dele e desfechou-lhe dois tiros no peito à queima roupa.

O Dr. Miguel Trindade teve morte imediata.



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