sexta-feira, 4 de março de 2005

 

A Testemunha de Acusação


A D. Silvina tinha uma pequena loja de pronto-a-vestir de senhora.
Não que precisasse: com os filhos já arrumados, o ordenado que o marido recebia no banco chegava perfeitamente para viverem confortavelmente. Ainda por cima com a reforma da mãe, que vivia com eles.
Mas era um aconchego ao orçamento familiar. E depois, sempre estava entretida.

Mas às vezes até uma pequena loja traz os seus problemas e causa os seus dissabores.

Foi o que aconteceu com o caso da D. Maria Ribeiro:
Não é que aquela malandra, que sempre tinha considerado amiga e uma pessoa séria, lhe tinha passado um cheque de 30 contos para pagamento de umas roupas, e o cheque tinha sido devolvido por falta de provisão?
Escreveu-lhe cartas sem fim, que ela já não atendia o telefone. Mandou-lhe recados por toda a gente que a conhecia. Nada!
Até que, quase a terminarem os seis meses, apresentou queixa crime.

Mais de três anos depois, foi chamada a julgamento na qualidade de testemunha do Ministério Público.
A arguida faltou e o julgamento foi adiado.
Na segunda data, novo adiamento. Ao que parece, nem sequer a tinham ainda conseguido notificar.
Seis meses depois, novo julgamento. E mais um adiamento.
Uma semana depois, outro ainda. Já era o quarto.
A loja fechada e as deslocações ao Tribunal, já lhe estavam mais caras que o raio dos 30 contos do cheque.

Uns tempos depois, recebeu um postal do Tribunal com a marcação das duas novas datas – mas somente para daí a um ano e três meses: uma quinta-feira e a segunda-feira seguinte.
Preocupada, colou o postal com um bocado de fita gomada ao pé do telefone.

No preciso dia em que o julgamento estava marcado, a mãe morreu.
Foi dar com ela caída ao fundo das escadas. Chamou os Bombeiros, que se limitaram a confirmar o óbito.
Claro que nem lhe passou pela cabeça o julgamento.

Como teve de ser feita autópsia e se meteu o fim de semana, o funeral foi marcado para segunda-feira. Saía da igreja lá da terra para o cemitério próximo.
A missa de corpo presente estava marcada para as 10 horas.

Ainda não eram 9 horas, entraram dois soldados da GNR na capela mortuária. Tinham um mandado para a conduzir ao Tribunal por causa do julgamento do cheque.

Um mandado? Mas ela não era a queixosa?
Pois, mas como tinha faltado na quinta-feira anterior, a juíza tinha-a condenado a pagar uma multa de 36 contos, e tinha ordenado que a GNR a fosse buscar, para não faltar outra vez.

Mas estava no funeral da mãe!
Não podiam os senhores agentes ter um bocadinho de compreensão?
Mas não, estavam só a cumprir ordens superiores.

Ao menos assistir à missa?
Não: a missa era às 10 e a essa hora já tinham de estar no tribunal.

Ninguém queria acreditar no que se estava a passar:
Completamente atónitos, todos viram a D. Silvina, debaixo de um choro incontrolável a ser arrancada ao funeral da própria mãe para ser conduzida ao Tribunal com um escolta da GNR, ainda por cima para ser testemunha num processo em que era queixosa.

Já depois das 11 da manhã chamaram-na à sala de audiências.
Sem conseguir deter as lágrimas, explicou à juíza que o que queria era estar no funeral da mãe, de onde tinha sido forçada a sair pela GNR.
Se calhar, àquela hora o funeral até já tinha acabado.
Mas a juíza explicou-lhe calmamente que era assim, e quais as obrigações legais de um cidadão perante a justiça.
Mas foi muita cordial com a D. Silvina: explicou-lhe que o Tribunal continuava sem descobrir o paradeiro da arguida para a notificar. Pediu-lhe desculpa e tudo.

E uma vez mais adiou o julgamento...



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